Como movimentos dos olhos e eye-tracking influenciam o reconhecimento facial no cérebro

Influência movimentos oculares no reconhecimento facial

Quando observamos um rosto, nossos olhos não se movem de forma aleatória. Cada pessoa possui um padrão próprio de explorar feições — um “estilo de olhar” que pode tornar o reconhecimento de rostos mais fácil ou mais difícil. Pesquisas recentes mostram que esses padrões de movimentos oculares influenciam não apenas nosso desempenho, mas também como o cérebro representa visualmente cada rosto, conectando diretamente o que vemos à maneira como pensamos.

Um estudo publicado na revista npj Science of Learning, conduzido por Guoyang Liu e pesquisadores da Universidade de Hong Kong, investigou como padrões de olhar, rastreados por meio de tecnologia de eye-tracking, estão relacionados às representações neurais do reconhecimento facial. A partir da combinação de eye-tracking com eletroencefalografia (EEG) — técnicas também utilizadas na Bittar Neurociência — os cientistas demonstraram que diferentes formas de olhar para um rosto estão associadas a diferentes níveis de qualidade e eficiência no processamento visual e neural dessas informações — revelando por que cada pessoa reconhece rostos de maneira única.

Como o experimento foi conduzido

O ponto de partida do estudo foi uma pergunta central para a pesquisa em reconhecimento facial: será que direcionar o olhar para regiões específicas do rosto — como os olhos — ou manter um padrão de observação consistente facilita a maneira como o cérebro constrói representações visuais de rostos? E mais: seria possível identificar essa influência diretamente na atividade elétrica do cérebro, em tempo real?

Para investigar essas questões, os pesquisadores recrutaram 84 jovens universitários saudáveis, todos com visão normal ou corrigida. Eles participaram de uma tarefa clássica de memória facial, que envolvia memorizar vários rostos e, em seguida, indicar quais já haviam sido vistos e quais eram novos. Durante todo o processo, os movimentos dos olhos foram monitorados por um sistema de eye-tracking de alta precisão, enquanto o cérebro era registrado por meio de 64 eletrodos de EEG, permitindo analisar a dinâmica neural associada à percepção e ao reconhecimento.

O experimento utilizou um conjunto de 256 imagens faciais padronizadas de indivíduos asiáticos de diferentes idades e gêneros, apresentadas em blocos específicos para garantir controle experimental. Essa abordagem permitiu identificar como diferentes padrões de olhar influenciam tanto o desempenho comportamental quanto a forma como o cérebro processa e armazena informações faciais.

Dois estilos de olhar, duas histórias cerebrais

Para analisar de forma detalhada os movimentos oculares, os pesquisadores utilizaram uma técnica avançada chamada eye movement analysis with Hidden Markov Models (EMHMM). Esse método permite identificar padrões individuais de fixação, revelando não apenas onde as pessoas olham ao encarar um rosto, mas também a sequência desses movimentos — um aspecto crucial para entender como diferentes estilos de observação influenciam o reconhecimento facial.

A análise feita com EMHMM mostrou dois padrões dominantes de exploração visual: um padrão focado nos olhos, no qual os participantes concentravam a maior parte das fixações na região ocular, e um padrão focado no nariz, caracterizado por fixações mais centrais. Além disso, os cientistas avaliaram a consistência desses padrões ao longo do tempo utilizando uma medida chamada entropia. Nesse contexto, valores menores de entropia indicam um estilo de olhar mais regular e previsível, repetido de forma semelhante em diferentes tentativas — uma condição que tende a favorecer representações neurais mais estáveis.

Cérebro em ação: o que o EEG revelou

Para entender como os movimentos dos olhos influenciam o processamento neural, os pesquisadores analisaram os sinais de EEG utilizando algoritmos de machine learning. A ideia era medir a qualidade das representações neurais: quanto melhor o algoritmo conseguia distinguir rostos antigos de novos apenas com base nos padrões de EEG, maior era o nível de processamento cerebral dedicado àquela informação. A velocidade dessa distinção, capturada pela latência do pico de acurácia, serviu como indicador de eficiência neural.

Os resultados foram consistentes e reveladores. Participantes com um padrão de olhar focado nos olhos apresentaram maior acurácia na decodificação das representações neurais — especialmente na faixa de alta frequência da banda alfa (10–12 Hz), amplamente associada a processos de atenção e memória visual. Em termos simples: fixar o olhar nos olhos de um rosto melhora a qualidade da representação cerebral, favorecendo o reconhecimento facial.

Além disso, participantes que exibiam maior consistência no padrão de olhar — ou seja, mantinham a mesma estratégia visual ao longo das tentativas — apresentaram latência menor no pico de decodificação neural. Esse achado indica que seus cérebros processavam as informações mais rapidamente, refletindo maior eficiência cognitiva. Essas pessoas também obtiveram acurácia superior nas análises de ERP (potenciais relacionados a eventos), outro marcador clássico de boa qualidade de representação neural.

Para garantir robustez, os pesquisadores controlaram variáveis como QI não verbal, memória de trabalho e capacidade de planejamento. Mesmo com esses ajustes, a consistência do padrão de olhar continuou explicando uma parte significativa da variação na velocidade do processamento neural — reforçando que o modo como olhamos para um rosto tem impacto direto e mensurável na atividade cerebral.

Onde o rosto ganha forma no cérebro

Do ponto de vista neurofisiológico, as regiões mais envolvidas nas representações neurais discriminativas de rostos foram as áreas centrais e parietais, zonas fundamentais para integrar informações sensoriais e visuais. Um achado particularmente relevante foi observado nos participantes com padrão de olhar focado nos olhos: suas representações cerebrais eram mais definidas no hemisfério direito, tradicionalmente associado ao reconhecimento facial e ao processamento visual de identidades.

Qualidade x eficiência: dois caminhos para ver melhor

Os resultados apontam para um cenário claro: padrões de exploração visual influenciam o cérebro de maneiras distintas e complementares.

O estudo também enfrentou uma dúvida comum em pesquisas com EEG: poderiam os próprios movimentos dos olhos gerar artefatos capazes de distorcer os resultados? Para responder, os autores realizaram múltiplas análises de controle e demonstraram que os padrões oculares não explicam as diferenças encontradas nos sinais de EEG. Isso reforça que os efeitos registrados refletem atividade cerebral genuína, e não ruído provocado por piscar ou movimentar os olhos.

Olhar e pensar: uma mesma rede

Essas descobertas não apenas aprofundam nosso entendimento sobre os mecanismos neurais do reconhecimento facial, mas também apontam para futuras aplicações práticas. Os autores destacam que tecnologias de eye-tracking podem, futuramente, auxiliar na criação de estratégias personalizadas para pessoas com dificuldades de reconhecer rostos — como em casos de prosopagnosia ou em alguns perfis do espectro autista.

Ao combinar padrões de comportamento visual com dados neurais de alta resolução temporal, o estudo revela uma conexão poderosa entre percepção e cognição. Cada movimento ocular contribui não apenas para o que vemos, mas para como o cérebro interpreta o mundo. Reconhecer um rosto pode começar com o olhar direcionado aos olhos, mas termina nas redes elétricas que se acendem por trás deles.

O artigo “Understanding the role of eye movement pattern and consistency during face recognition through EEG decoding” é assinado por Guoyang Liu, Yueyuan Zheng, Michelle Hei Lam Tsang, Yazhou Zhao e Janet Hsiao.